O que o atendimento psicanalítico prestado à pessoas negras tem a ver com o crime?

Gostaria de tematizar um pouco a questão da linguagem e posturas usadas junto aos nossos pacientes/ clientes “analisandos”. Coisa fundamental é entender que cotas são reparações de uma dívida histórica e uma outra, também importante, é entender que a diáspora vivida por muitas gerações e coleção de nações africanas, é algo doído e que faz sofrer por muito tempo. E muito. 
Na clínica psicanalítica o que temos de acolher e suportar (dar suporte a) não é a negritude estampada na cor da pele, mas aquilo que vem na inscrição do simbólico e do imaginário no discurso daquele que nos vem contar a sua história e procurar alívio para seu sofrimento. Tudo filtrado pela posição em que colocamos o outro e na que ele mesmo se coloca. 
Assim sendo, temos de tomar cuidado com a corretude das palavras, da linguagem, além de prestar atenção ao discurso do outro e ao nosso. 
No sofrimento daquele que sofre com o racismo encontramos, não raras vezes, o mecanismo de defesa do deslocamento, o racismo é escondido e vem à cena a questão da pobreza, do gênero ou da exceção social, ou seja, o sofrimento com o racismo desloca-se para outras narrativas colaterais, passando o sujeito a sofrer, realmente, em outros setores, mas o que torna a condição do racismo uma condição invisível. Intocável e não traduzida em palavras, só em sofrimento. 
Para o psicanalista em ação, o que deve permear sua ação é, sempre, a atitude da suspeita, do questionamento. Perguntar sobre a naturalização do perverso e do crime. Alertando e interpretando o calar e o como falar, numa atitude de respeito (na devida proporção de que essa atitude é similar à trazer para o peito) e, nesse sentido, estabelecer uma conexão de empatia. 
Em 2006 trabalhamos 274 oficinas com cerca de 30 crianças, cada, com faixa etária entre 6 e 12 anos, na maioria meninas, na tentativa de trabalhar uma educação emocional assertiva com aquelas crianças. Todas negras ou pardas e, cada qual, vivendo “a dor e a delícia” de serem o que são, para tal, trabalhamos com Contos e lendas africanas, bem como com percussão e dança africana. Numa tentativa de, pela via do simbólico, engendrar uma mudança na construção de sua autoestima e autoconceito. Ouvíamos histórias sobre pessoas que “queriam” lhes dar banho com alvejante para ver se “embranqueciam” ou passar seu cabelo a ferro de passar roupa, para torná-los lisos e domados, bem como “achavam-nas” bonitas, apesar de serem negras… eram histórias que se repetiam em bocas e com atores diferentes, contudo, contextos muito parecidos. 
Em outro âmbito, quem já não ouviu uma mulher, negra e pobre dizer que nesse mundo ela não tem vez, de certo ouvirá. Certamente ela sofre por ser negra e pobre, ou mulher, mas uma persistência infeliz combina esses fatores e impede que a mesma saiba interpretar qual deles a fere mais. 
Há muito percebemos o branqueamento social que ocorre na vida da pessoa negra que começa a “despontar” em termos de ascensão social (estudo, trabalho e aquisição de bens) é o movimento de passar a “apontar” naquela pessoa requisitos que ela foi adquirindo da sociedade branca e, num processo transcultural, que acompanha a aculturação produzida, o próprio negro e a própria negra faz questão de não mais ser entendido/a como tal. Preferindo ser, cada vez mais, percebido/a como mais branco/a do que é, com atributos mais brancos do que os seus ou dos seus. 
Precisamos problematizar sempre, em nosso ofício de terapeutas, para que o discurso colonialista não se aposse do setting e a naturalização do racismo passe a eivar a relação analítica. Em busca do conhecimento e encontro de seu desejo. 
Chamar o racismo de preconceito ou de bullying é, também,  naturalizar uma atitude criminosa. NOMEAR o racismo de racismo, e de crime, é um dos primeiros atos do psicanalista ou terapeuta de orientação psicodinâmica. Lembrarmos que para a psicanálise, nomear é exercer poder sobre.  Uma atitude quase educativa, visto que as situações de miscigenação real e o discurso de democracia social do Brasil tornam o racismo algo difícil de nomear. 
Assim, concluo dizendo que fazer com que o sujeito da análise escute e se escute como aquele que sofre as consequências do discurso de aculturação é um dos feitos do analista.

Deixo abaixo uma contribuição singela em formato podcast:
Descubra "Preconceito com a cor da pele | Episódio #1" de Quarto de Manu com os pais na Deezer clique aqui

Descubra "Respeito às diferenças | Episódio 3" de Quarto de Manu com os pais na Deezer clique aqui

Descubra "O que é ser negro? | Episódio #4" de Quarto de Manu com os pais na Deezer clique aqui

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